Sobre o livro ‘A Anarquia’, de Malatesta

Resolvi reler este livro novamente depois de alguns anos de tê-lo mofando na estante. Se eu fosse comprar um livro sobre o assunto hoje, seria mais exigente quanto ao seu conteúdo e suas fontes (Malatesta não cita quase nada); porém, compreendo que é um livro escrito somente para agitprop e dá pra tolerar isso.

Apesar da maior parte do livro já não me convencer hoje, há algumas partes que são aproveitáveis.

O panfleto é de 1891 e pode ser lido em inglês aqui: http://www.marxists.org/archive/malatesta/1891/xx/anarchy.htm (Versão curta)

E em espanhol aqui: http://www.nodo50.org/fau/teoria_anarquista/malatesta/1.htm (Versão completa, provavelmente a que foi utilizada na tradução deste livro que tenho em mãos)

Comentarei primeiramente a biografia de Errico Malatesta escrita por Jorge Silva antes da introdução ao livro, algo que me chamou a atenção:

É citado um movimento italiano chamado Levante de Benevento, do qual Malatesta fez parte; diz-se que ele se tornou lendário na Itália depois que “um grupo anarquista percorreu o sul da Itália distribuindo armas à população e queimando os arquivos públicos, proclamando o comunismo libertário”. Não me incomoda a ação contestadora ou o uso das armas (que, aliás, é um ato autoritário); porém, o fato de pensarem que mudarão tudo ao colocarem armas nas mãos do povo politicamente desorganizado (e não se preocupando em organizá-lo, já que isso supõe necessariamente uma centralização em algum grau), adotando a via da “espontaneidade das massas”, uma tática que a história comprovou continuamente ser causa somente de derrotas para o proletariado. Não preciso citar exemplos do Brasil recente, tendo as Jornadas de Junho de 2013 falhado miseravelmente em pelo menos trazer um pouco de estabilidade política. Nada que incomode os anarquistas e seus dogmas, infelizmente. O anarquismo nega a necessidade de organizações proletárias disciplinadas e centralizadas, deixando o proletariado inofensivo diante das poderosas organizações capitalistas.

Outro fato da biografia me atenta: “(…) foi um dos defensores do internacionalismo contra os que defendiam o apoio à causa dos Aliados”. Ora, então o internacionalismo supõe que não haja defesa de nada que esteja relacionado a alguma hierarquia, autoridade, governo ou nação? Me espanta um italiano que se dizia revolucionário, radical, não ter defendido a causa dos Aliados que era, sobretudo, a causa da luta contra o nazi-fascismo. Aliás, qualquer um que desse ao menos uma parca importância ao internacionalismo proletário defenderia as causas do governo soviético, que fez de tudo para que os Aliados se tornassem uma aliança militar fortemente determinada a erradicar o fascismo e o nazismo; o Estado proletário soviético propôs situações de ajuda militar que até mesmo eram desvantajosas para a URSS, porém que deveria contar com a participação ativa das outras partes. Ainda assim, o Exército Vermelho combateu praticamente só.

Mas o anarquista não leva nada disso em consideração; é muito ligado a valores morais: defender a causa de “um autoritário”, mesmo que seja a melhor opção naquela situação para as massas do povo, para evitar que maiores desgraças caiam sobre elas.

Há uma comparação demasiado simplista entre a condição do proletário e a condição do “governado”. Como o anarquismo parte do pressuposto de que todo Estado é “autoritário”, não há diferenças fundamentais, por exemplo, entre ter vivido no Brasil durante a era das oligarquias cafeeiras, durante a Ditadura Militar e hoje durante os governos liberais? Será que se tivessem chance de escolher um dos 3 períodos, necessariamente, escolheriam a Ditadura Militar, por exemplo?

Cada Estado tem sua particularidade, pois ele nem surge, nem opera, nem se desenvolve à parte da situação social; é exatamente o contrário, é um produto da sociedade. Mais especificamente, a que surge a partir da decadência do comunismo primitivo – mas Malatesta afirma que a necessidade de “governo” (Estado) foi meramente uma crença, o que vai contra a realidade estudada pela história. Uma sociedade possui determinadas relações que garantem o seu funcionamento, de uma maneira determinada. Com a divisão da sociedade em classes sociais, surge também a base para o surgimento do Estado. As relações sociais mais importante a partir dessa época são relativas à produção, sendo o modo de produção a relação determinante. Outras partem da natureza deste: a posição social e os interesses de cada classe; como são as interações entre elas; qual(is) detêm o poder político-econômico de facto. (Lembrando que “burocracia” não é uma classe social) Formas de governo não dependem necessariamente da natureza do modo de produção, apesar de certas formas de governo terem aparecido em sociedades com certas características produtivas; um exemplo, é a existência de monarquias parlamentaristas em alguns países capitalistas, enquanto outros são republicanos (igualmente podendo ser parlamentaristas, ou presidencialistas), outros monárquicos e absolutistas.

Cada uma dessas formas de governo impõem limitações particulares à atividade política, assim como devem alterar o conteúdo da crítica revolucionária, suas estratégias e táticas. Para o anarquismo, nada disso diferencia os diversos Estados. Como pensar em “atuação de denúncia ao capitalismo dentro do parlamento burguês”, quando não há nem ao menos um parlamento? Apenas um exemplo que demonstra o que se quer dizer com “limitações particular à atividade política”.

Em seguida, no livro, vemos mais comparações: dessa vez entre patrões, padres, professores, juízes e policiais, os quais Malatesta denomina de “amos”. Não há nenhuma preocupação em compreender e analisar cada coisa, separadamente, utilizando uma metodologia materialista; basta dizer que são autoritários ou fazem parte de uma hierarquia; isso é o suficiente para que tais categorias caiam no desprezo do anarquismo vulgar. Pois não interessa o professor ser um trabalhador proletário (apesar de não estar inserido em um contexto de produção, é obrigado a trabalhar para outra pessoa, o patrão, sem ser o dono de seu próprio trabalho, sem nem poder decidir coletivamente os rumos da escola em que leciona); quem acompanha as lutas dos professores teria a coragem de dizer que eles são iguais às classes dominantes capitalistas? Defendendo a reprodução dos dogmas “anti-autoritários”, ele se conduz a distorcer a realidade para tentar justificá-los:

“E, se, aos efeitos naturais do hábito, acrescento a educação dada pelo patrão, pelo padre, pelo professor, etc, todos interessados em pregar que o governo e os amos são necessários [N.E.: Há exceções, no caso dos padres, por exemplo Frei Betto, Júlio Lancelotti e todas as agremiações progressistas como a Pastoral da Terra que fazem um trabalho em conjunto com a massa campesina no Brasil; e muito mais exceções no caso dos professores; sem contar os exemplos da própria Itália e em outros países], se incluirmos o juiz e o policial que se esforçam para reduzir ao silêncio aquele que pensa de forma diferente [N.E.: Correção: para legitimar uma determinada ordem política, econômica e cultural] e quer propagar o seu pensamento [N.E.: Correção: quer sabotar esta ordem], compreender-se-á de que maneira, no cérebro pouco culto da massa, [N.E.: Diria o anticomunista paranoico, se isso saísse da boca de um marxista, que ele quer dizer que “as massas são burras e devem se submeter aos indivíduos supostamente iluminados”] enraizou-se o preconceito [N.E.: Correção: em muitos casos, pós-conceito] da utilidade, da necessidade do patrão e do governo”. [N.E.: Aqui, há apenas uma retórica barata tentando associar necessariamente a ordem capitalista ao conceito de Estado; o Estado é anterior e também posterior a essa realidade social com “patrões” (burgueses) e proletários; anarquistas deveriam estudar mais sobre as origens do Estado]

Enfim, é clara a tentativa de associar o Estado, assim como quase todos os conceitos e objetos criticados pelos anarquistas, a características intrinsecamente abomináveis, mas que nem sempre estão ali. Fazem uma enorme cadeia de relações entre cada uma dessas “aberrações”. Entendo que não poderíamos exigir algo muito diferente de Malatesta nessa época, pois ainda não havia visto surgir o primeiro Estado proletário vitorioso (a República Socialista Federativa Soviética da Rússia), porém em um texto que o editor colocou depois da obra principal deste livro, este homem – que é considerado “um dos maiores anarquistas da história” – teve a “capacidade” de comparar os Estados italiano, espanhol e russo em um texto de 15 de março de 1924, chamado “Democracia e anarquismo”.

Afinal, apenas os anarquistas sabem o que significa democracia, que tomado assim por separado de outras palavras, torna-se um conceito vago e inexistente no mundo real. Não existe “democracia” ou “ditadura”. Existe ditadura burguesa, ditadura proletária, ditadura monárquica, ditadura feudal, democracia burguesa, democracia proletária, democracia direta, democracia representativa, democracia orgânica, etc.

É curioso que, mesmo com tanta pretensão sobre serem as únicas forças políticas “libertárias” e “democráticas” da história, sempre falharam em aplicar a democracia e principalmente em torná-la uma alternativa duradoura, uma alternativa real ao capitalismo. Isso acontece porque seus métodos são ineficientes. E isso não muda porque existe muito dogmatismo. Todo o resto é considerado um bando de “ditadores malvados” sempre prontos para oprimir as massas, manipular e enganar o povo.

Os anarquistas confundiam liberdade política com descentralização extrema e espontaneísmo, gerando fragmentação, desorganização e falta de unidade programática no movimento operário. Na história da humanidade vemos que são as revoluções dirigidas por estruturas políticas bem organizadas, com certo grau de centralização, que conseguem atingir com mais facilidade a vitória, as que mais chegam perto de completar seus objetivos (consolidar uma nova ordem social e política); enquanto as que apoiam o espontaneísmo como estratégia cedo ou tarde acabaram falhando.

O Estado é um instrumento de dominação de classe que tem origem no surgimento da propriedade privada, com a decadência da comunidade primitiva (na qual não há excedentes de produção, não há troca, consequentemente não há mercado, nem mercadorias) por fatores endógenos. De acordo com o historiador Nelson Werneck Sodré em Formação Histórica do Brasil (página 5):

“(…) aparece nela a primeira divisão social do trabalho, o pastoreio separa-se da agricultura. Este primeiro passo na divisão social do trabalho faz aparecer excedentes de produção e a necessidade de trocá-los. Surge, em consequência, a mercadoria e o mercado e começam a definir-se e diferenciar-se classes sociais”.

A determinação de quais classes são dominantes e quais são dominadas cabe ao modo de produção, por exemplo o escravista, com o escravo sendo totalmente uma posse do dono da terra, podendo ser vendido ou comprado e considerado no mesmo grupo das “bestas” pelas leis do período. Quais são as permanências em relação ao Estado burguês contemporâneo? Qual a semelhança destes com o Estado absolutista feudal? Não se compara a ditadura de uma classe com a ditadura de outra, ainda mais a de classes cuja fonte de dominação sobre outras é a propriedade privada e que obviamente não é o caso dos Estados proletários com economia comunista. Como se percebe analisando a história criticamente e de um ponto de vista científico (logo, materialista), cada mudança de modo de produção, revolucionária, também provoca inevitavelmente mudanças estruturais na política e na cultura, de forma que não podemos dizer que o Estado proletário é um Estado burguês modificado. É, na prática, um governo do proletariado fundado a partir da ruína do Estado burguês, da destruição da máquina estatal burguesa, como nos explica Karl Marx em A Guerra Civil Na França, é um pressuposto para a criação efetiva de tal Estado. Não se usa o Estado burguês, já pronto; se esse for o caso, a situação será de gerenciamento do capitalismo. Na União Soviética, até as reformas que restauraram o capitalismo, os Sovietes permaneceram como expressão máxima da vida política daqueles países socialistas. Como nos mostram John Reed, Sidney Webb, Beatrice Webb, Anton Pannekoek – enfim, todos que escreveram sobre essa estrutura política – nunca antes foi vista uma experiência tão democrática (o povo trabalhador com o poder político-econômico em suas mãos) quanto a da democracia soviética. O casal Webb é o que investiga mais a fundo o tema. Nesse blog, existe um post sobre isso, leia-o clicando aqui.

Enfim, toda a investigação marxista acerca do Estado e da natureza de classe dele já descartou o “individualismo” presente na ideia de que o Estado seria uma “coletividade de governantes”. Depois dessa afirmação, o autor associa ao termo governantes: “reis, presidentes, ministros, deputados etc”. Ele se recusa a ver as diferenças entre uma monarquia e uma república, entre as funções de cada cargo citado ou a natureza de cada cargo – dependendo da realidade social em que estão inserido. Isso acontece porque o anarquismo considera o Estado, como premissa e condição de existência do anarquismo, como a principal estrutura da sociedade a ser abolida, consideram-no independente de ideologias e classes sociais, como um organismo que paira acima da sociedade, desligada dela. É uma posição simplista, que impede a correta compreensão do significado social de determinado Estado.

Afirma Malatesta que “os governantes obrigam todo o mundo a fazer o que eles próprios querem”. Será que não notam como os interesses do Estado estão intimamente ligados (e subordinados) aos interesses de uma classe social dominante? Que é impossível indivíduos governarem sozinhos? Lembro aqui da importante contribuição do filósofo marxista Domenico Losurdo, que derruba a concepção de “totalitarismo” tão utilizada por anarquistas, liberais e demais forças anticomunistas da atualidade.

Essa ideia é derrubada também diante das experiências socialistas e suas organizações de massa, que tiveram uma natureza completamente distinta de qualquer “democracia burguesia”. Por exemplo, os Soviets, as Comunas Populares na China maoísta, os Comitês Populares da Coreia, os Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, etc. Em todas essas estruturas de poder há democracia direta e mista (participativa + direta); todas elas formam a base do socialismo em determinado país.

Para esconder esse fato, criaram um discurso – até mesmo repetido por certos “marxistas” – que, segundo o qual, existe uma relação intrínseca entre, por exemplo, capitalismo e produção de mercadorias; entre capitalismo e comércio; entre capital e dinheiro; entre capital e salário; e quaisquer outras categorias que não definem capitalismo (que é um sistema econômico baseado no acúmulo de capital – que é definido pela “fórmula” DINHEIRO-MERCADORIA-DINHEIRO, ou seja, investimento em produção de mercadorias (ou em prestação de serviços) com objetivo de retorno financeiro. Isso leva à defesa da passagem para a troca direta de produtos, sem que as relações capitalistas tenham sido socialmente superadas. A troca de produtos possui na primeira fase do comunismo um conteúdo inteiramente novo em relação à troca de mercadorias, embora por enquanto ainda se mantenha a forma da troca de produtos. A troca de produtos não é ainda uma distribuição direta. Esta existirá na segunda fase do comunismo, tendo sido criadas preliminarmente as premissas indispensáveis a essa passagem. Na URSS, por exemplo, conforme a obra de Stalin chamada “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS”, seria necessário elevar a propriedade kolkhoziana (propriedades coletivas) ao nível de “propriedade de todo o povo” e substituir a circulação mercantil pela troca de produtos, mas também a realização de outras condições: a sólida garantia a um progresso ininterrupto de toda a produção social com a primazia do aumento da produção de meios de produção e a criação das condições para um desenvolvimento cultural da sociedade que garanta a todos os membros da sociedade o desenvolvimento amplo de sua capacidade física e intelectual.

Para tal tarefa ser concluída, é necessário um trabalho difícil, prolongado e intenso contra forças reacionárias do mundo burguês, que se levanta com brutalidade contra qualquer centelha de resistência seu poder político. Nada mais justo que exigir a utilização de práticas que se provaram como mais eficientes nesse trabalho político de resistência anticapitalista!


Julgo importante a leitura complementar do texto “Sobre a Autoridade”, escrito por Friedrich Engels em 1873:

Alguns socialistas abriram, nestes últimos tempos, uma campanha em regra contra aquilo a que chamam ‘o princípio da autoridade’. Basta dizer-lhes que este ou aquele ato é autoritário para que o condenem. Abusam de tal modo desta maneira sumária de proceder que é preciso examinarmos a coisa mais atentamente. Autoridade, no sentido próprio da palavra, quer dizer: imposição da vontade de outrem sobre a nossa; e, por outro lado, autoridade supõe subordinação. Ora, na medida em que estas duas palavras soam mal e que a relação que representam é desagradável para a parte subordinada, trata-se de saber se há meio de passar sem elas e se – dadas as atuais condições da sociedade – poderemos dar à vida um outro estado social no qual essa autoridade não tenha mais razão de existir e onde, por conseguinte, deva desaparecer.

Examinando as condições econômicas, industriais e agrícolas que estão na base da atual sociedade burguesa, verificamos que tendem a substituir cada vez mais a ação isolada pela ação combinada dos indivíduos. A indústria moderna substituiu as pequenas oficinas de produtores isolados pelas grandes fábricas e oficinas onde centenas de operários vigiam máquinas complexas movidas pelo vapor; os carros e as camionetas nas grandes estradas são suplantados pelos comboios nas vias férreas, tal como as pequenas escunas e faluas à vela o foram pelos barcos a vapor. A própria agricultura caiu pouco a pouco no domínio da máquina e do vapor, os quais substituem lenta, mas inexoravelmente, os pequenos proprietários pelos grandes capitalistas que cultivam com a ajuda de operários assalariados grandes superfícies de terrenos. Em todo o lado a ação independente dos indivíduos é substituída pela ação combinada, a complicação dos processos interdependentes. Mas, quem diz ação combinada, diz organização; ora, é possível a organização sem a autoridade?

Suponhamos que uma revolução social tenha destronado os capitalistas que presidem agora a produção e a circulação das riquezas. Suponhamos, para nos colocarmos por completo no ponto de vista dos anti-autoritários, que a terra e os instrumentos de trabalho se tornaram a propriedade coletiva dos trabalhadores que os empregam. A autoridade terá desaparecido ou terá pura e simplesmente mudado de forma? Vejamos.

Tomemos por exemplo uma fiação de algodão. O algodão deve passar pelo menos por seis operações sucessivas antes de ser reduzido a fio, operações que se fazem, na sua maioria, em salas diferentes. Além disso, para manter as máquinas em movimento, é preciso um engenheiro que vigie a máquina a vapor, mecânicos para as reparações cotidianas e numerosos serventes que transportem os produtos de uma sala para a outra, etc.

Todos estes operários, homens, mulheres e crianças são obrigados a começar e a acabar o seu trabalho a horas determinadas pela autoridade do vapor que não se importa com a autonomia individual. É preciso, pois, primeiramente, que os operários se entendam quanto às horas de trabalho, e que essas horas, uma vez fixadas, se tornem a regra para todos, sem nenhuma exceção. Depois, em cada uma das salas e constantemente, surgem questões de detalhe sobre o modo de produção, sobre a distribuição dos materiais, etc., questões que é preciso resolver imediatamente, sob pena de ver parar toda a produção; quer se resolvam pela decisão de um delegado proposto por cada ramo de trabalho, ou, se possível, pelo voto da maioria, a vontade individual deve sempre subordinar-se; quer isto dizer que as questões serão resolvidas autoritariamente. O mecanismo automático de uma grande fábrica é bem mais tirânico do que alguma vez o conseguirão ser os pequenos capitalistas que empregam os operários. Pelo menos nas horas de trabalho pode-se escrever na porta da fábrica: Lasciate ogni autonomia voi che entrate! [1]. Se, pela ciência e pelo seu gênio inventivo, o homem submeteu as forças da natureza, estas se vingam submetendo-o, já que delas se usa, a um verdadeiro despotismo independente de qualquer organização social. Querer abolir a autoridade na grande indústria, é querer abolir a própria indústria, é destruir a fiação a vapor para voltar à roca de fiar. Tomemos, como outro exemplo, a estrada de ferro. Também aí, a cooperação de uma infinidade de indivíduos é absolutamente necessária, cooperação que deve ter lugar em horas bem precisas para que não ocorram desastres. Também aí, a primeira condição para o seu uso é uma vontade dominante que resolva todas as questões subordinadas, vontade representada quer por um único delegado, quer por um comitê encarregado de executar as decisões de uma maioria de interessados.

Num ou noutro caso, há uma autoridade muito pronunciada. Mas, o que é mais: que aconteceria ao primeiro comboio que partisse caso se abolisse a autoridade dos empregados da estrada de ferro sobre os senhores passageiros? Porém, a necessidade da autoridade, e de uma autoridade imperiosa, não pode ser mais evidente que num navio em alto mar. Aí, no momento do perigo, a vida de todos depende da obediência instantânea e absoluta de todos à vontade de um único.

Quando avanço tais argumentos contra os mais furiosos anti-autoritários, estes não sabem o que responder:”Ah! Isso é verdade, mas o que damos aos delegados não é uma autoridade, mas sim uma missão!”. Estes senhores julgam ter mudado as coisas quando só mudaram os nomes. Eis como estes profundos pensadores gozam com as pessoas.

Acabamos, pois de ver que, por um lado, certa autoridade, atribuída não importa como, e, por outro lado, certa subordinação são coisas que, independentemente de toda a organização social, se impõem a nós devido às condições nas quais produzimos e fazemos circular os produtos.

Vimos, além disso, que as condições materiais de produção e da circulação se complicam inevitavelmente com o desenvolvimento da grande indústria e da grande agricultura e tendem cada vez mais a estender o campo dessa autoridade. É, pois, absurdo falar do princípio da autoridade como de um princípio mau em absoluto, e do princípio da autonomia como de um princípio bom em absoluto. A autoridade e a autonomia são coisas relativas cujos domínios variam nas diferentes fases da evolução social. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro restringirá a autoridade aos limites no interior dos quais as condições de produção a tornam inevitável, poderíamos entender-nos; em vez disso, permanecem cegos perante todos os fatos que a tornam necessária, e levantam-se contra a palavra.

Porque é que os anti-autoritários não se limitam a erguer-se contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas concordam em que o Estado político e com ele a autoridade política desaparecerão como consequência da próxima revolução social, ou seja, que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas protegendo os verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação.

[1] Vós que aqui entrais, abandonai toda a autonomia! – Trata-se de um paralelismo ao texto original de Dante Alighieri, A Divina Comédia. Chegando Virgílio e Dante à entrada do inferno, este se assombra com a inscrição que se lê no portal:”Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” -“Deixai toda esperança, ó vós que entrais”. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. Edição bilíngue. São Paulo: Ed. 34, 1998. Canto III, p. 37. (Agradecimentos a Alline Fernandes Corrêa pela informação)

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