O mito da “não-violência”

“Ninguém lhe dará a liberdade. Ninguém lhe dará igualdade ou justiça. Se fores um homem, toma-os à força.” — Malcolm-X, grande herói do movimento afroamericano pelos direitos civis e oponente ferrenho da não violência.

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Em 1942, George Orwell afirmou, em um ensaio acerca da Segunda Guerra Mundial, que “O pacifismo é objetivamente pró-fascista. Isto é do mais elementar bom senso”. À primeira vista, esta sentença de seu ensaio intitulado “O Pacifismo e a Guerra” parece ser um disparate escandaloso, uma declaração provocadora por parte de um escritor que buscava apenas chamar atenção para si. Como diabos poderia alguém comparar o pacifismo — aparentemente a expressão do amor pela humanidade, pela paz e harmonia e oponente incansável de todas as formas de violência — com o apoio ao fascismo — a mais reacionária, chauvinista, militarista e sanguinária forma burguesa de governo que, na época, travava uma guerra genocida? Além disso, como poderia alguém ir ainda mais além e dizer que tal afirmação era “do mais elementar bom senso”? Contudo, se nós analisarmos mais profundamente as palavras de Orwell, veremos que ambas as declarações são verdadeiras. Orwell prossegue:

«Se dificultares os esforços de guerra de um lado, automaticamente estarás a ajudar ao outro. Não há qualquer forma real de permanecer fora de uma guerra como esta. Na prática, ‘ele que não está do meu lado está contra mim’. A ideia de que se pode permanecer distante à luta e superior a ela […] é uma ilusão burguesa, fruto do dinheiro e da segurança.»

Orwell também aponta para o fato de que os nazistas divulgavam propaganda pacifista na Grã-Bretanha e nos EUA. Quer gostemos ou não desta linha de raciocínio, esta é a mais pura verdade: em uma guerra como a Segunda Guerra Mundial, tinha-se o dever de escolher de que lado se estava; não havia uma maneira de permanecer neutro. Aqueles que tentavam enganar aos outros e a si mesmos, fingindo viver em uma torre de marfim, feita de paz e amor pela humanidade como um todo, ao mesmo tempo em que se opunham a todos os lados da guerra estavam obviamente cegos em relação à enorme ameaça que as potências do Eixo representavam ao mundo. “Mas ainda assim, tal declaração continua sendo uma generalização”, poderia dizer um pacifista ou um simpatizante da não violência. “A Segunda Guerra Mundial era um caso muito especial e qualquer um que hoje dissesse o mesmo que Orwell seria um completo lunático. Hoje em dia nós não estamos mais em uma guerra em escala total, na qual está em jogo o destino da humanidade.” — Sim, nós estamos! Travamos uma guerra de classes contra um inimigo de fato tão impiedoso quanto os nazistas. Aqueles que fazem a propaganda intransigente da não violência, fingindo desconhecerem ou estarem indiferentes em relação aos mecanismos da sociedade e condenando o simples pensamento de resistência violenta devem ser chamados de “fascifistas”. Ao longo deste artigo, o leitor verá que as declarações antipacifistas lidas acima também são válidas quando aplicadas no contexto da luta de classes. Ao contrário de contribuir com táticas úteis ao movimento dos trabalhadores e à luta dos povos pela emancipação e libertação, o pacifismo atravanca e dificulta a luta contra a classe dominante, desta forma, favorecendo a mesma.

A natureza de classe do pacifismo

A ciência do marxismo-leninismo demonstra que apenas a classe proletária — dada a sua posição especial em meio ao modo de produção capitalista e o papel resultante de tal posição — possui um interesse legítimo na revolução socialista e é a única capaz de levar a cabo tal revolução, se apropriando dos meios de produção e colocando termo a todo o sistema de classes, juntamente com todas as formas de exploração do homem pelo homem. Portanto, deve-se examinar a natureza de classe do pacifismo. Seria o pacifismo uma expressão progressista da luta de classes, uma tática ditada pelas necessidades e pela luta dos oprimidos e explorados, com raiz em um movimento voltado para a classe trabalhadora? Representaria o pacifismo um desafio ou uma ameaça à ordem de classes vigente, ao capitalismo ou ao domínio burguês? Pelo contrário, o pacifismo é um produto da burguesia, o predileto dos membros dessa classe e dos intelectuais liberais. Como nós já vimos, Orwell afirmou com justeza que o pacifismo é uma “ilusão burguesa, produto do dinheiro e da segurança”. Quando se dá conta de sua origem, não é de se surpreender que o pacifismo pareça estar sempre fora de contato com a realidade, impregnado de noções idealistas. Isto, somado à sua recusa em reconhecer ou em aceitar a luta de classes, faz do pacifismo um obstáculo, tanto para os movimentos que lutam pela emancipação da classe trabalhadora e dos povos oprimidos, quanto para a luta de libertação contra o grande capital. A luta de classes é a força motriz da história, inerente a todas as sociedades constituídas por classes antagônicas. Marx e Engels demonstraram que a burguesia só pode produzir lucro à custa da classe trabalhadora, ao passo que a classe trabalhadora só será capaz de alcançar seus objetivos e melhorar sua situação e suas condições de vida em prejuízo da burguesia. Em outras palavras, os objetivos da burguesia e do proletariado são diametralmente opostos e seus interesses enquanto classe, antagônicos e irreconciliáveis.

Uma vez que compreendemos este fato, somos obrigados a reconhecer que a violência é algo inerente à luta de classes. Não há registros históricos de uma classe dominante que tenha voluntária e espontaneamente aberto mão de seu poder e de seus privilégios em beneficio de uma classe oprimida. Tal coisa nunca aconteceu e não há possibilidades reais de que algo parecido aconteça. O pacifista é, obviamente, ignorante em relação a tal fato, ou é, de fato, um cúmplice consciente. A pequena burguesia é essencialmente uma classe fadada à desaparição e dividida entre apoiar a burguesia ou o proletariado. De qualquer forma, eles são guiados por um aventureirismo rebelde ou, no caso dos pacifistas, um humanismo idealista e sentimental. O pacifista é, obviamente, ignorante em relação a tal fato, ou é, de fato, um cúmplice consciente. A pequena burguesia é essencialmente uma classe fadada à derrota e dividida entre apoiar a burguesia ou o proletariado. De qualquer forma, eles são guiados por um aventureirismo rebelde ou, no caso dos pacifistas, um humanismo idealista e sentimental. Para os pacifistas, a violência está longe de ser uma consequência inevitável. Ela é meramente uma escolha pessoal, o produto de uma mente irracional e brutal. Afinal, como diz o conto de fadas cor-de-rosa pacifista, todos podem ser convencidos por argumentos racionais. Logo, devemos “falar a verdade àqueles no poder” e apelar à boa vontade e ao lado racional e emocional (?) da classe dominante e lembrá-los de sua “responsabilidade moral”. Salta aos olhos o fato de que esta é uma abordagem ingênua e idealista — quando não desonesta —, que luta por nada menos do que um milagre — a burguesia negando seus interesses enquanto classe e agindo de forma contrária a eles significaria que ela deixou de ser burguesia. O ativista americano Malcolm-X nos exorta:

«Ninguém lhe dará a liberdade. Ninguém lhe dará igualdade ou justiça. Se fores um homem, toma-os à força.»

Se houvesse, de fato, algo de verdadeiro na suposição antimaterialista de que todos os problemas se resolvem quando as “ideias certas” são propagadas e que todos verão a beleza e justeza de tais ideias, não poderia, então , haver uma explicação acerca do porquê de nós ocidentais não vivermos em uma sociedade comunista. Nós devíamos nos perguntar também por que há tantas coisas erradas com o mundo, apesar de haver tantas pessoas argumentando e se manifestando da maneira mais racional, agradável e tolerante por décadas. Para que seja conquistado o apoio da opinião pública é mister que seja atraída a atenção de uma audiência simpática à causa; o fator mais importante em chamar a atenção de tal audiência e, por conseguinte, conseguir o apoio público é, sem dúvida, a mídia. Mas, esperem — quem é mesmo que controla a mídia e os meios de comunicação e, desta forma, mantém um monopólio sobre a formação de opinião? Ah, sim! Os capitalistas e a elite corporativa! De volta aos apelos idealistas pela clemência das mesmas pessoas contra as quais nós travamos uma luta de vida ou morte.

«Um movimento pretensamente revolucionário empenhou-se em uma batalha terrivelmente desigual, na tentativa de ganhar corações e mentes sem que fossem destruídas as estruturas que envenenaram esses corações e mentes.» — Peter Gelderloos, ativista estadunidense

Esperar outro desenlace significaria retroceder aos dias dos socialistas utópicos, que defendiam a mesma coisa. Devemos nos perguntar: o que levaria algumas pessoas a defender pontos de vista ingênuos como este, mesmo após o socialismo utópico ter sido superado pelo socialismo científico, isto é, após Marx e Engels terem dado ao socialismo uma base científica? A resposta está na natureza de classe do pacifismo. A burguesia não deseja ver a superação do capitalismo, uma vez que isto poderia colocar em risco sua posição privilegiada.

O racismo do pacifismo

A cor da pele é ainda outro fator que contribui muito para que um indivíduo ocupe uma posição privilegiada ou desfavorecida na sociedade. Apesar do fato de Martin Luther King Jr. e Gandhi serem frequentemente usados como estandartes para o movimento pacifista, a maioria esmagadora dos intelectuais liberais e patrocinadores do movimento pacifista é branca, o que remete a uma visão de mundo eurocentrista e desvia a atenção da discriminação institucionalizada à qual são submetidos os cidadãos negros e pardos todos os dias. Ao invés de levar em consideração as diversas circunstâncias de populações inteiras que são oprimidas, violadas, brutalizadas e subjugadas em seu próprio território e de povos ameaçados pelo imperialismo em todo o mundo, o típico pacifista prefere apelar à moralidade, alegando que “violência nunca será a solução”. Eles tentam, com sucesso, encobrir o fato de que em todos os casos de opressão e tirania, a resistência violenta, de fato é, sim, uma solução — a única solução contra a violência crescente vivenciada em uma base diária, direcionada contra pessoas que não têm escolha senão retribuir à violência, se quiserem viver! Gelderloos sublinha que esta é essencialmente uma forma diferenciada de pensamento colonialista (“o fardo do homem branco”), a expressão de um racismo subjacente:

«A ideia de que todos somos parte de uma única luta homogênea e que os brancos, que estão no coração do império, podem dizer às pessoas de cor em suas (semi-) colônias qual a melhor maneira de resistir.» – Peter Gelderloos

Não se trata de uma acusação infundada, mas de uma observação válida, corroborada pelas tentativas por parte dos partidários da supremacia branca nos Estados Unidos de utilizar o pacifismo — e, de uma forma especial, pacifistas de cor — para abrandar os ânimos da população afroamericana e, assim, enfraquecer seus movimentos de resistência. A classe dominante norte-americana subitamente descobriu sua preocupação com os direitos dos negros quando estes ficaram fartos de meses de protestos não violentos e passaram a resistir à violência policial, como em Birmingham, no ano de 1963. Para prevenir situações semelhantes a esta, o FBI se concentrou em rastrear e “pacificar” possíveis “desordeiros”. Gelderloos cita um memorando do FBI que denotava a preocupação com o surgimento de um “Messias negro”, como Malcolm-X poderia ter sido, se estivesse vivo à época. O documento prossegue:

«Prevenir a violência por parte de grupos de nacionalistas negros. Isto é de suma importância, e é, obviamente, uma meta de nossas atividades investigativas; tal objetivo deve ser também a meta do Programa de Contrainteligência [COINTELPRO]. Através da contrainteligência será possível rastreá-los e neutralizá-los antes que eles exerçam seu potencial para a violência.»

O que o FBI pretendia foi exprimido em letras garrafais pela “neutralização” dos ativistas do Partido dos Panteras Negras, por exemplo. A maioria dos pequeno-burgueses é incapaz de ser “radical”, uma vez que isto significaria questionar criticamente a ordem vigente e, com isto, pôr em risco seu próprio papel privilegiado na sociedade de classes. Quando as “classes subalternas” e as “pessoas de cor” reclamam seus direitos, fazem soar os alarmes daqueles que beneficiam as estruturas de poder vigentes. Mesmo que eles cedam aos seus instintos mais revoltosos, eles ainda assim gozariam de uma leniência muito maior por parte das classes dominantes do que militantes da classe trabalhadora ou líderes de comunidades oprimidas poderiam jamais esperar. No momento em que eles se unem verdadeiramente a um dos dois últimos grupos, eles perdem seu status privilegiado na sociedade.

As “vitórias” do pacifismo

Tendo tudo isto em mente, devemos reconhecer que o pacifismo é uma abordagem bem sucedida, que já conseguiu diversas vitórias históricas. Ícones da resistência não violenta como Martin Luther King Jr. e Mohandas Karamchand Gandhi vêm imediatamente à nossa mente. Peter Gelderloos, então, põe em cheque a legitimidade da afirmação de que Gandhi tenha conseguido qualquer outra coisa que não fosse garantir conforto e segurança para o imperialismo britânico. Ele aponta para o fato de que os britânicos se defrontavam com o enorme número de mortos de ambos os conflitos mundiais, com a imensa destruição causada pela Luftwaffe alemã e com conflitos armados em suas colônias árabes. Não importa o que os pacifistas ou a versão do establishment queiram que nós pensemos, não era a desobediência civil de Gandhi que preocupava os britânicos e obrigava-os a lançar mãos daquela “joia da coroa do Império”, como a Índia era chamada: os britânicos, responsáveis por diversas crises de fome artificiais que mataram dezenas de milhões de indianos, se defrontavam com razões muito mais fortes para se retirarem da Índia do que a possibilidade de Gandhi se matar de fome.

«Como parte de um padrão perturbadoramente universal, os pacifistas ignoram outras formas de resistência e ajudam, assim, a propagar a falsa história [de] que Gandhi e seus discípulos foram o único mando e guia da resistência indiana. São ignorados importantes líderes, tais como Chandrashekhar Azad, que travou uma luta armada contra os colonizadores britânicos, e revolucionários como Bhagat Singh, que ganhou o apoio das massas pelos atentados a bomba e assassinatos como parte de uma luta para alcançar a derrubada tanto do capitalismo estrangeiro, quanto do indiano.»  — Peter Gelderloos

O último objetivo, obviamente, não foi atingido, e temos todo o direito de nos perguntar se o movimento de libertação na Índia foi mesmo tão bem sucedido quanto nos é dito. Gelderloos prossegue, mais uma vez:

«O movimento pela libertação da Índia fracassou. Os britânicos não foram forçados a abrir mão da Índia. Ao invés disso, eles próprios optaram [por] mudar da gestão colonial direta para uma gestão semicolonial. Que tipo de vitória permite aos perdedores determinarem a hora e a maneira da ascensão [ao poder] dos vitoriosos? Os britânicos foram os autores da nova constituição e colocaram no poder os seus sucessores escolhidos a dedo. Eles atiçaram as chamas do separatismo étnico e religioso, de forma que a Índia fosse dividida [e se voltasse] contra si mesma, negada de seu direito à paz e à prosperidade e dependente do auxílio militar e demais [auxílios] por parte do bloco euro-americano. A Índia continua sendo explorada pelas corporações euro-americanas (apesar de muitas novas corporações indianas, subsidiárias em sua maioria, terem se juntado à pilhagem), e continua a fornecer recursos naturais e mercado para os estados imperialistas. De muitas maneiras, a pobreza de seu povo se intensificou e a exploração ficou ainda mais eficaz.» — Peter Gelderloos

Voltemo-nos agora para Martin Luther King Jr., o suposto herói do movimento pelos direitos civis dos afroamericanos. Sem nenhuma surpresa, o mesmo padrão mais uma vez nos é revelado: o papel de um ícone pacifista é generosamente supervalorizado, e a “vitoria” do movimento é atribuída a oradores e táticas não-violentas. São ignorados grupos como o Partido dos Panteras Negras e indivíduos como Malcolm-X, é ignorada a enorme influência que eles tiveram e ainda têm em meio à comunidade negra dos Estados Unidos e são, também, ignoradas as suas realizações. A classe dominante, como nós já vimos, procurou ativamente isolar e “pacificar” estes grupos e indivíduos ao utilizarem pessoas como o Dr. King para este fim. Mais uma vez, a pretensa vitória não está completa como se imagina:

«As pessoas de cor têm, ainda hoje, rendas médias menores, menos acesso aos serviços de habitação e saúde, e têm a saúde mais frágil do que a dos brancos. A segregação continua existindo de facto. […] Outras raças foram, também, fisgadas pelo fruto mítico dos direitos civis. Os imigrantes latinos e asiáticos são especialmente vulneráveis ao abuso, à deportação, à recusa dos serviços sociais pelos quais eles pagam impostos e ao trabalho tóxico e excessivo em [empresas de] suadouro ou como operários agrícolas migrantes. Muçulmanos e árabes estão tomando o peso da repressão pós-11 de Setembro, enquanto uma sociedade que se declarou “[racialmente] daltônica” evidencia uma leve pontada de hipocrisia. Os povos nativos são mantidos [em um grau] tão baixo na escala socioeconômica, a ponto de permanecerem invisíveis, exceto nas ocasionais manifestações simbólicas do multiculturalismo dos EUA — o mascote esportivo estereotipado ou a boneca da garota-hula, que obscurecem a verdadeira realidade dos povos indígenas.» — Peter Gelderloos

E a lista continua. A resistência não violenta colocou um fim ao espetáculo de horror, morte e destruição causado pelos Estados Unidos sobre a Indochina em geral e no Vietnã, em especial? Não — mas a resistência violenta dos povos indochineses e dos vietnamitas colocou, sim, um basta à situação. Depois dos vietnamitas e indochineses terem se defendido por anos a fio contra a agressão imperialista — que incluiu a maior campanha de bombardeios jamais vista, além de outros atos de genocídio que causaram um sofrimento inimaginável às populações locais —, a classe dominante americana chegou à conclusão de que a guerra não poderia ser vencida. As coisas ficaram ainda piores para o alto comando posteriormente, conforme as tropas “se contaminavam” cada vez mais com ideias “antiamericanas” em favor da libertação do proletariado e das populações negras. Cada vez mais desmoralizadas, as tropas se recusavam a obedecer às ordens do comando, recorrendo muitas vezes à sabotagem e até ao assassinato dos odiados comandantes. Mesmo após a retirada das tropas estadunidenses, os imperialistas continuavam a apoiar o seu governo-fantoche, a ditadura militar no Sul. O que um movimento pacifista vietnamita poderia realizar em um cenário como este? O mesmo que todos os outros que nós vimos antes: absolutamente nada. É desnecessário dizer que o mesmo se aplica às guerras mais recentes. Nenhuma delas foi cessada por apelos e protestos pacifistas. Ao contrário, a resistência armada nos países atacados e ocupados preocupa os líderes imperialistas no Ocidente e resulta cada vez mais em apelos pela redução ou pela retirada completa de suas tropas.

A imoralidade do pacifismo

«Eu gostaria a dizer a vocês para que abaixem as armas que têm, por serem inúteis para salvar a si mesmos ou à humanidade. Vocês deveriam convidar Herr Hitler e Signore Mussolini a levarem tudo aquilo que quiserem do país que chamam de seu […] Se estes cavalheiros decidirem ocupar suas casas, acolham-nos. Se não quiserem ceder a vocês uma saída, vocês, homens, mulheres e crianças deixar-se-ão ser massacrados, mas deverão recusar-lhes a submissão.»  — Mohandas Karamchand Gandhi, o “herói” do movimento pela independência da Índia.

Por que esta “virtuosa” condenação da violência? Por que excluir completamente a possibilidade da resistência violenta realizar qualquer coisa? Por que esta insistência em crer que quaisquer táticas que não sejam não violentas estão fadadas ao fracasso? Qual seria, então, a justificativa dos pacifistas? A resposta é muito simples: “a violência nunca é a resposta”, “toda violência é ruim”, ou porque “a violência é violenta” ou mesmo porque “violência gera violência” e “gentileza gera gentileza”. Examinemos, então, esta profunda sabedoria. Aplicá-la na prática enriquecerá a nossa análise e a tornará ainda mais profunda. De volta ao ensaio de Orwell sobre a Segunda Guerra Mundial, nós, partindo da lógica pacifista, devemos não somente condenar a todos os exércitos envolvidos no confronto, mas devemos também condenar os grupos guerrilheiros de libertação nacional, os Partizans, por combaterem os nazistas, pois “violência apenas gera violência”. Pois, afinal, Gandhi, de fato, estava certo em recomendar aos judeus para que deixassem de resistir aos nazistas e “oferecessem a si mesmos à faca do açougueiro”. Que bem fez o Vietcong em se levantar em armas contra os invasores estadunidenses, sabendo que isso levaria a uma “espiral de violência”? Então, subitamente nós descobrimos que Israel também merece a nossa simpatia, pois se os brutais palestinos não recorressem constantemente à violência, os pobres sionistas sitiados provavelmente nunca teriam sido forçados a bombardear a Faixa de Gaza, bem como a outras medidas “defensivas”. Mesmo que os bombardeios ocorressem de qualquer maneira, isto não justificaria a resistência violenta por parte dos palestinos. Os palestinos fariam apenas perder sua superioridade moral, pois “a violência é violenta”, “violência nunca é a resposta” e “violência gera violência”. Eles, na verdade, deveriam fazer alguns sit-ins e vigílias à luz de velas ou, quem sabe, depositar flores nos trabucos dos fuzis israelitas e “falar a verdade” ao parlamento israelita! Os pacifistas frequentemente alegam que aqueles que usam a violência como “uma saída fácil” são maus, ignorantes, guiados pelas emoções e, sobretudo, imorais, ao passo que os pacifistas são pessoas bondosas, racionais e iluminadas, portadoras de uma infinita superioridade moral. Mais uma vez, nós vemos aqui, a “boa e virtuosa posição pacifista” servindo aos interesses da classe dominante. Não a resistência violenta, mas o pacifismo é, de fato, uma “saída fácil” ser colocado em prática por essas pessoas asquerosamente imorais, o pacifismo torna-se cúmplice da opressão. Ou o proletariado russo se levanta em armas para colocar termo à guerra de rapina imperialista e à reação czarista, ou o Czar ordena às suas tropas para que abram fogo contra uma multidão de protestantes pacíficos desarmados — isto pouco importa, pois “toda violência é má”. A abordagem pacifista ignora as condições concretas e, desta forma, não é capaz de reconhecer que nem toda violência é “má” e que há diferentes formas de violência, de acordo com a motivação, conteúdo, qualidade e quantidade.

O pacifismo não se importa em diferenciar — ao invés disso, tal ideologia utiliza de uma lógica simplória, com base na evocação de conotações negativas. Ao invés de mostrar solidariedade e apoio às lutas de libertação dos povos oprimidos, o pacifismo conclui sua linha de raciocínio censurando à vítima e exortando-a a esperar que algum milagre aconteça. Aparentemente, se nós não quisermos cair vítimas de um infinito ciclo de violência, nós temos de nos assegurar que somente táticas não-violentas serão empregadas. A ironia inerente a esta linha de raciocínio é o fato de que nós temos o direito à livre escolha de rejeitar a violência e abraçar o pacifismo, mas estamos inevitavelmente fadados a nos afogar em nosso próprio sangue. Por que as pessoas não poderiam abaixar suas armas e esquecer a violência apenas após seu país ter sido liberto do jugo imperialista ou após a revolução ter triunfado?

As táticas do pacifismo

O interesse de classe burguês pode ser observado não somente em sua expressão ideológica, mas também em suas táticas e objetivos concretos. A rejeição dogmática da violência sob quaisquer circunstâncias reduz, é claro, de forma significativa o número de táticas disponíveis a táticas tais como sit-ins, vigílias à luz de velas, narizes de palhaço, cânticos com palavras de ordem, etc. Talvez assim, o “outro lado” saiba que aqueles que protestam são pessoas boas e infinitamente superiores, no plano moral, aos seus oponentes corruptos. Gelderloos intervém:

«Simplificando, se um movimento não representa uma ameaça, ele não pode mudar um sistema baseado na violência e na coerção centralizadas.» Peter Gelderloos

É exatamente isto o que o Estado é — não se trata de uma entidade neutra e benevolente, preocupada com o bem-estar da sociedade, mas  de um instrumento do domínio de classe, ávido a garantir o seu monopólio sobre o uso da violência. E ele não o faz devido a um instinto irracional ou selvagem. Ao contrário, centralizar e institucionalizar a violência são tarefas vitais para a sobrevivência da classe dominante e a manutenção da propriedade burguesa. Sempre que este monopólio no seio do Estado é posto em cheque, a classe dominante reage ferozmente, como mostra um olhar atento aos noticiários ou aos livros de história, por exemplo.

Portanto, insistir exclusivamente em táticas não violentas apenas garante que quaisquer chances de um progresso real sejam efetivamente postas por terra e que o descontentamento da população seja mantido sob controle e direcionado para canais inofensivos. Assim, nós podemos dizer que os pacifistas, longe de desafiarem a ordem vigente, a consolidam. Enquanto governos de todo o mundo reagem de forma cada vez mais violenta a protestos que questionam suas políticas, nós somos instruídos a nos desarmar e nem ao menos pensar na mera possibilidade de resistir violentamente. Após os intransigentes pacifistas terem tido sucesso em manter o descontentamento do povo em formas aceitáveis e inofensivas, bem como em manter o povo desamparado e à espera de um milagre após terem “dito a verdade àqueles no poder”, eles devem ser recompensados. Eles podem ter o seu protesto e a cobertura da imprensa será toda deles. E o mais importante — a fachada de paz social, liberdade de expressão e democracia é mantida intacta.

A classe dominante, com sucesso, evitou que uma eventual onda de resistência violenta pudesse pôr por terra a sua aura imaculada de paz social, amor, harmonia e democracia. Como poderia então ser explicado outro fenômeno pelo qual os pacifistas gostam de jactar-se, as assim chamadas “revoluções não violentas”? O Estado e as classes dominantes foram desafiados, porventura fizeram uso da polícia contra os protestantes, mas nenhum banho de sangue ocorreu tampouco uma guerra civil eclodiu. Ainda assim, estes regimes foram levados ao colapso e o povo triunfou.

O que falar daquelas revoluções de Veludo, Laranjas, Rosas e outras “Revoluções Coloridas”? É triste que tenhamos que responder mais uma vez a uma pergunta como esta e, mais uma vez, nos é revelada a ingenuidade do movimento não violento. Tais revoluções não são autoexplicativas? Qual foi o resultado de todas estas “revoluções”? Elas realmente tiveram sucesso? Algo mudou para melhor? Os povos dos paises onde ocorreram tais revoluções vivem hoje no país das maravilhas? Conclusão Como nós vimos, o pacifismo:

«Defende uma sociedade sem uma hierarquia racial ou de classe; sem elites privilegiadas, poderosas e violentas; sem uma imprensa corporativa controlada pelos interesses do estado a soldo do capital, ávida a manipular a percepção dos cidadãos. Tal sociedade não existe entre as democracias capitalistas industrializadas.» — Peter Gelderloos

Poderia isto significar que todas as táticas não violentas são completamente inúteis ou que nós devemos permanecer em casa quando protestos e encontros não violentos acontecem e que, ao invés disso, devemos procurar intensificar a violência sempre que possível? Poderia isto significar que o que devemos fazer é arremessar coquetéis molotov lá e acolá? Não! O Marxismo-Leninismo condena o terrorismo individual e a incitação contraproducente da violência. Isto apenas alienaria uma potencial base de apoio e daria ao Estado uma razão para intensificar sua repressão reacionária. Agitação e propaganda são atividades de extrema importância e ambas são táticas não violentas. Táticas pacíficas podem ser um meio útil e eficiente de chamar atenção, ganhar apoio e obter pequenas vitórias, tais como concessões. Mas nós devemos manter em mente o fato de que táticas pacíficas não podem ser mais do que meios de alcançar o nosso objetivo final, a revolução democrática anti-imperialista e, posteriormente, a socialista, que será necessariamente violenta.

Este artigo é dirigido contra a negação deste fato e contra a rejeição de quaisquer outros meios que não as táticas pacíficas, vistas como se elas constituíssem um fim em si. Não há argumentos contra este fato e, não importa o quanto tentemos ignorá-lo, não importa o quão seguros nos sentimos em nosso mundinho dos sonhos cor-de-rosa ou em nossa torre de marfim, a realidade nos alcançará. Tomara que ela não nos pegue de surpresa. Quando é chegada a hora, nós todos devemos estar preparados para defender a nós mesmos e responder à reação violenta com ações violentas, bem como preparar e armar o proletariado na teoria e na prática para o inevitável confronto com a burguesia e com seu exército e sua polícia fascistas. Qualquer outra abordagem seria sinônimo de “abrir mão da militância revolucionária (que é o mesmo que abrir mão da revolução como um todo)”, como diz Gelderloos, com justeza.

A classe dominante não esperará pacificamente que as coisas aconteçam; eles não ficarão parados observando passivamente enquanto nós assumimos o controle de seu poder e riqueza. Se nós não quisermos servir no papel de massa de manobra nas mãos do nosso inimigo de classe, nós devemos nos dar conta de que há uma guerra em andamento e que o pacifismo, ainda hoje, continua sendo pró-fascista, pró-burguês e pró-imperialista.

Nota: Peter Gelderloos é um militante anarquista estadunidense. O fato de termos mencionado uma obra sua no texto não significa que partilhemos de suas concepções antiestatistas e idealistas. Nota²: George Orwell foi um escritor de caráter burguês e contrarrevolucionário. Os trechos do ensaio citado foram citados por fazerem observações e referências interessantes em relação ao assunto.

Nota³: As citações do ativista americano Peter Gelderloos foram tiradas de seu livro “Como a não violência ajuda o Estado”.

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